terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A música gospel e a desigualdade de bênçãos

'Nada do que é de Deus é obtido com dinheiro' - Tertuliano (160 - 220 dC), primeiro autor cristão a produzir obra literária em latim (imagem: reprodução discernimentocristao.wordpress.com)


Lembro do antigo cinema do Méier que frequentava com minha avó quando era pequeno e que depois virou igreja. Foram tantos outros... Depois fui entender a letra Z do caderninho do Pensador. 'É comédia?' De antemão, esclareço que este espaço respeita toda e qualquer forma de expressão religiosa. Aqui se discute música. Mas, se a música dialoga com a religião, pensai-vos a respeito, oh, filhos da terceira arte!

A presidente da república Dilma Rousseff sancionou no início deste ano uma lei que modifica a Lei Rouanet. Criada há vinte anos, a Lei Rouanet estabelece como se dá o financiamento público de projetos culturais no Brasil. A mudança, proposta ainda nos anos lulistas, determina que 'para os efeitos desta Lei, ficam reconhecidos como manifestação cultural a música gospel e os eventos a ela relacionados, exceto aqueles promovidos por igrejas.'

Reflito: música gospel é manifestação cultural ou manifestação religiosa? É os dois? Mais: nas vias de fato, a evangelização carece de financiamento público?

Segundo a Billboard Charts, dois dos três discos mais vendidos no Brasil em 2011 são de cunho religioso. Em tempos de extinção dos discos diamantinados, só o Padre Marcelo Rossi levou quatro, vendendo 1 milhão e duzentos mil do seu 'Ágape Musical'. O não-musical foi o livro mais vendido de sua categoria. De metrossexualidade exagerada, o outro padre, Fábio de Melo, foi o campeão de CD's vendidos em 2008 e 2009. Novelas passaram a incluir a música gospel em suas trilhas, fomentando ainda mais um mercado que movimenta cerca de 2 bilhões de reais por ano. Para as gravadoras esfomeadas é realmente um milagre, ganha pão multiplicado.

Curiosa a modificação na Lei Rouanet, observando a exceção da benção para 'eventos promovidos por igrejas.' Pera aí, mas e a música gospel propriamente dita, é promovida por quem?

Esquemão. Pra lá de topo da cadeia alimentar. Um exemplo, bem de levinho, é a Igreja Universal do Reino de Deus. Dona de jornais e revistas de ampla tiragem, da segunda maior emissora de televisão do país, de uma vasta rede nacional de emissoras de rádio com conteúdo integralmente evangélico, também controla a ABRATEL - segunda maior associação brasileira de emissoras de rádios e TVs do Brasil. De quebra, possui a Line Records, verdadeira manjedoura de artistas do gênero gospel. Foi ainda a IURD que fundou o Partido Municipalista Renovador, hoje Partido Republicano Brasileiro, do qual o vice de Lula, José Alencar, era filiado.

E os eventos megalomaníacos, dignos de cifras papais, como aquele que faz o Aterro do Flamengo parecer um campinho, parando o Rio de Janeiro? Vai uma Rouanetzinha pra bombar mais isso aí? Ser artista de Deus, no Brasil, virou emprego cobiçado, tipo deputado, vereador. Rende. Ex-pagodeiros entram na sua casa, na sua vida, adotam maquiagem celestial e discursam angelicais que só eles... É bonita também essa pose de mensageiro, vale um cabelo penteadinho, a cara de bom genro. Putas viram santas afinadas, viciados mudam de onda, celebridades falidas de quinto escalão se reerguem do ostracismo enquanto a máquina que arquiteta esse mercado se afortuna soberbamente. E o povo duro, bovino, cantando no chuveiro.

Há de se debochar. Não da religião, que fique claro. Tampouco do gênero gospel. Como emocionam os corais paroquianos! Sou capaz de chorar todas as vezes em que as freiras cantam em 'Mudança de Hábito'. E quantos artistas tiveram sua obra tocada pela religião de forma sincera, sem catequização radical? George Harrison, Elvis Presley, Roberto Carlos... Assim, sim! Sem algemas, sem contrato assinado com o Senhor. Há de se debochar, sim, de quem faz caixa com a fé. Caixa pesada.

Pensai-vos nos desvirginados, pensai-vos nos expulsos do paraíso, pensai-vos no Dicró, plantado sob o sol da Carioca, a vender seu disco por preço verdadeiramente cristão.

E pensai-vos, oh céus, que a música é livre. E a religião também.

Um comentário:

  1. A religião enche os cofres públicos e transforma seus súditos em máquinas sem capacidade de pensamento individual.
    Controle mental é uma realidade, mas não é da maneira que acontece nos filmes, ondas invisíveis que atravessam paredes e controlam a vida destas pessoas, nem mesmo através da água vendida em igrejas.
    O que acontece em cultos religiosos é um intenso trabalho psicológico de massa, um apelo ao ego, uma suposta salvação do desespero que aflige a natureza humana, uma promessa do impossível.
    Nada melhor do que utilizar a música, o meio mais fácil de atingir o subconsciente humano para fazer essa lavagem, tanto é que esse sempre foi o modelo da música gospel brasileira, criada por produtores que "mudaram de vida" e decidiram colocar seus talentos em prol do $enhor.
    É realmente tão surpreendente que essa máquina de fazer dinheiro não entre no esquema de cultura governamental?

    Hunter S. Thompson

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