quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A arte do jabá - Curiosidades sobre 'Uma Escola Atrapalhada'

 uma escola marketada (imagem: reprodução do álbum original)


A democracia abraçava os brasileiros no ano de 1989. Encerrada a ditadura, a eleição para presidente no Brasil consolidava-se novamente. Na sociedade da época, uma juventude cheia de gritos entalados, sedenta por liberdade. Neste mesmo ano, Renato Aragão, Dedé, Mussum e Zacaria comemoravam mais um sucesso de bilheteria: 'Os Trapalhões na Terra dos Monstros' trouxe mais de 3 milhões de espectadores aos cinemas brasileiros. Didi preparava sua próxima tacada, embora os tempos já não fossem os mesmos.

Insatisfeitos com a gerência de seus direitos, Zacaria, Dedé e Mussum já haviam criado a ZDM (antiga Demuza) para co-produzir os filmes ao lado da Renato Aragão Produções Artísticas. Curiosamente, a logomarca da ZDM reproduzia três pessoas em cima de cada letra, com cada cabeça trajando um colar elizabetano (espécie de cone para uso veterinário que limita o campo de atuação dos olhos, boca e ouvido). Embora continuasse lucrativo, o quarteto já não estava em sintonia amistosa.

 logo sugestiva da ZDM
Mas o filme que estava por vir, de forma no mínimo estranha, selou em tom profético o fim dos Trapalhões. A estranheza começa de cara. De 1990, 'Uma Escola Atrapalhada' era o primeiro fime dos quatro sem a palavra 'Trapalhões' no título. Dedé, Mussum e Zacaria tiveram papéis secundários em um roteiro onde Renato Aragão soube encaixar enbaçadamente sua própria biografia. Didi é o zelador da escola. Passa o início do filme sem dar as caras. Chega numa rede, na mala de um ônibus, e enfrenta percalços pelas ruas até chegar no trabalho. Uma clara alusão ao passado de Renato, cearense que foi ganhar a vida na cidade grande. No meio da trama, em um de seus diálogos de maior importância, revela o sonho de ser ator de cinema. Passa mais um tempo sumido no filme até o desfecho.

Um dos professores da escola é interpretado por Augusto Liberato. E isso é fundamental para entender a escolha dos atores (!) protagonistas. Lançado no 'Viva a Noite', extinto programa musical que dominou sábados do SBT por anos, o grupo Dominó participara de outros filmes dos Trapalhões, inclusive dos dois últimos, junto com Angélica. Mas, com a saída de Nill, o Dominó dava sinais de desgaste. Para a felicidade teen da nação, a Promoart, produtora que havia criado o Dominó, já tinha outro enlatado no cartucho: o Polegar. Ao invés de coreografias estilizadas, os meninos do Polegar se apresentariam com instrumentos em punho. Gugu, que curiosamente encarnava um professor de música, era apresentador do 'Viva a Noite' e dono da Promoart. 

Angélica já era um fenômeno pré-adolescente estabelecido quando o filme foi concebido. Pouco antes de 'Uma Escola Atrapalhada', a loira havia gravado pela antiga CBS o álbum 'Angélica', o segundo de sua carreira. O single 'Angelical Touch' era o grande filão do trabalho. Não só por isso a canção ganhou clipe inserido durante o filme. 'Angelical Touch' era, na verdade, um jingle maquiado para impulsionar as vendas da linha de cosméticos que Angélica lançaria pela Boticário. A linha, homônima à música, era segmentada para meninas de 10 a 15 anos e incluia perfume, shampoo e brilho labial. A letra da canção avisava:

'Se alguem entrar na onda do meu papo
Se quiser sentir num beijo o meu perfume
Até príncipe encantado vira sapo
E você vai se morder todo de ciúmes'

O disco de Angélica vendeu mais de um milhão de cópias (platina pela ABPD). Sobre o marketing disfarçado, o renomado jornalista cultural Aramis Millarch escreveu no tablóide Estado do Paraná, no dia 16 de março de 1990:

'O projeto Angélica Touch ultrapassou a investimentos de um milhão de dólares e o contrato de exclusividade com a atriz-cantora foi feito com base numa participação em royalties, o que deverá ampliar consideravelmente sua já gordíssima conta bancária (...) Trabalhando com o produtor Mazzola, num repertório feito especialmente para o público adolescente, não houve dificuldade de ajustar uma canção para que a ninfeta criasse em seu disco um jingle disfarçado'.

Outro que ganhou clipe no filme foi Supla. Punk rocker de berço esplêndido, Supla já tinha um álbum gravado no currículo e preparava o segundo, sob a produção de João Barone e participação de Roger Moreira. Se hoje é piada para muitos, Supla já foi aposta. Apostaram também no então dublador de Charlie Brown no Brasil, um jovem ator de fala calma. Era a estreia de Selton Mello no cinema brazuca.

Pela primeira vez em um filme dos Trapalhões a história não girava em torno dos próprios. Para que isso se sustentasse, combinaram artistas de pontencial musical com um enredo misterioso. Logo na primeira cena, o temido inspetor Anselmo repreende de maneira insana um aluno que se distrai durante a execução do hino nacional. Enquanto raspa a cabeça do rapaz, Anselmo dispara com olhar raivoso: 'isso é por desrespeito à bandeira!'. Impossível não associar a cena a uma tortura dos tempos de ditadura. O inspetor, de uniforme que mais se parece com uma farda militar, ronda o colégio de chicote na mão e inibe as algazarras e festividades promovidas pelo alunos. Ao se revelar o grande vilão da trama, tira do bolso sua Luger P08, famosa pistola usada pelos nazistas.

Meio do filme, um telefonema denuncia a existência de uma bomba dentro do colégio. Brecha para rápida aparição de Dedé e Zacaria, os Caça-Bombas. Obviamente atrapalhados, os dois não acham a bomba mas prendem dois suspeitos: o negro (Mussum, um vidente vendedor de cachorro quente) e o nordestino (Didi, o zelador). Saem os quatro Trapalhões, juntos pela última vez, na kombi dos Caça-Bombas, que inexplicavelmente explode com a tal bomba que deveria estar na escola. Diante dos destroços, chamuscado pelo fogo, Zacaria reclama da peruca queimada. Mussum dispara: 'se eu não sou vidente eu desencarnavis!' E eis que Didi, olhando para os três, solta a frase mais curiosa e estranha de todo o filme: 'tá vendo no que dá, entrar no filme dos outros?'. Foi o último filme de Zacaria, que viria a falecer depois das filmagens. No clímax, o zelador Didi some da escola e reaparece finalmente com seu sonho realizado: vira ator de cinema.  

homenagem prestada antes do filme
Os polegares encerram o longa apresentando 'Sou como Sou', em tom altamente festivo, libertário, comemorando a derrocada do inspetor Anselmo.

Com fotografia de Walter Carvalho e direção de Antônio Rangel, 'Uma Escola Atrapalhada' levou mais de 2.500.000 espectadores ao cinemas. Execrado pela crítica da época, é o 59º longa-metragem mais assistido da filmografia brasileira, na frente de 'Tropa de Elite 1' e de 'Meu nome não é Johnny'. Foi um dos últimos filmes feitos com a mão da Embrafilme, falecida estatal criada em 1969 que fomentava a produção e distribuição cinematográfica brasileira. A Embrafilme foi extinta naquele mesmo ano de 1990, pelo Programa Nacional de Desestatização (PND), criado no governo Fernando Collor de Mello.

Collor foi o primeiro presidente da república a sofrer um impeachmeant. A democracia brasileira persiste. Angélica e o grupo Polegar desistiram da carreira musical. 



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Para fazer o download da trilha sonora completa do filme, clique AQUI.

7 comentários:

  1. SÓ UM SER MUITO ILUMINADO,INTELIGENTE,... É CAPAZ DE PERCEBER E ESCREVER ESSAS VERDADES ESCONDIDAS NAS PROFUNDEZAS DAS ARBITRARIEDADES. A "CENA" MERECE...

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  2. parabéns! sou fã desse desse filme e nunca li nada tão bacana sobre ele... o blog inteiro é muito bom!

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  3. que loucura esse simbolo das letras e os colares elizabetanos. mto sinistro!

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  4. Angelical Touch é a melô da minha amiga Elizeli. Tanto que eu chamo a moça de "Elizelical Touch".

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  5. Angélica só desistiu da carrreira musical após 2001! Informação errada aí!

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  6. Angélica só desistiu da carrreira musical após 2001! Informação errada aí!

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  7. O grupo polegar foi extinto em 2004, mas recentemente voltou suas atividades em meados de outubro do ano passado (2014)

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