terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A música gospel e a desigualdade de bênçãos

'Nada do que é de Deus é obtido com dinheiro' - Tertuliano (160 - 220 dC), primeiro autor cristão a produzir obra literária em latim (imagem: reprodução discernimentocristao.wordpress.com)


Lembro do antigo cinema do Méier que frequentava com minha avó quando era pequeno e que depois virou igreja. Foram tantos outros... Depois fui entender a letra Z do caderninho do Pensador. 'É comédia?' De antemão, esclareço que este espaço respeita toda e qualquer forma de expressão religiosa. Aqui se discute música. Mas, se a música dialoga com a religião, pensai-vos a respeito, oh, filhos da terceira arte!

A presidente da república Dilma Rousseff sancionou no início deste ano uma lei que modifica a Lei Rouanet. Criada há vinte anos, a Lei Rouanet estabelece como se dá o financiamento público de projetos culturais no Brasil. A mudança, proposta ainda nos anos lulistas, determina que 'para os efeitos desta Lei, ficam reconhecidos como manifestação cultural a música gospel e os eventos a ela relacionados, exceto aqueles promovidos por igrejas.'

Reflito: música gospel é manifestação cultural ou manifestação religiosa? É os dois? Mais: nas vias de fato, a evangelização carece de financiamento público?

Segundo a Billboard Charts, dois dos três discos mais vendidos no Brasil em 2011 são de cunho religioso. Em tempos de extinção dos discos diamantinados, só o Padre Marcelo Rossi levou quatro, vendendo 1 milhão e duzentos mil do seu 'Ágape Musical'. O não-musical foi o livro mais vendido de sua categoria. De metrossexualidade exagerada, o outro padre, Fábio de Melo, foi o campeão de CD's vendidos em 2008 e 2009. Novelas passaram a incluir a música gospel em suas trilhas, fomentando ainda mais um mercado que movimenta cerca de 2 bilhões de reais por ano. Para as gravadoras esfomeadas é realmente um milagre, ganha pão multiplicado.

Curiosa a modificação na Lei Rouanet, observando a exceção da benção para 'eventos promovidos por igrejas.' Pera aí, mas e a música gospel propriamente dita, é promovida por quem?

Esquemão. Pra lá de topo da cadeia alimentar. Um exemplo, bem de levinho, é a Igreja Universal do Reino de Deus. Dona de jornais e revistas de ampla tiragem, da segunda maior emissora de televisão do país, de uma vasta rede nacional de emissoras de rádio com conteúdo integralmente evangélico, também controla a ABRATEL - segunda maior associação brasileira de emissoras de rádios e TVs do Brasil. De quebra, possui a Line Records, verdadeira manjedoura de artistas do gênero gospel. Foi ainda a IURD que fundou o Partido Municipalista Renovador, hoje Partido Republicano Brasileiro, do qual o vice de Lula, José Alencar, era filiado.

E os eventos megalomaníacos, dignos de cifras papais, como aquele que faz o Aterro do Flamengo parecer um campinho, parando o Rio de Janeiro? Vai uma Rouanetzinha pra bombar mais isso aí? Ser artista de Deus, no Brasil, virou emprego cobiçado, tipo deputado, vereador. Rende. Ex-pagodeiros entram na sua casa, na sua vida, adotam maquiagem celestial e discursam angelicais que só eles... É bonita também essa pose de mensageiro, vale um cabelo penteadinho, a cara de bom genro. Putas viram santas afinadas, viciados mudam de onda, celebridades falidas de quinto escalão se reerguem do ostracismo enquanto a máquina que arquiteta esse mercado se afortuna soberbamente. E o povo duro, bovino, cantando no chuveiro.

Há de se debochar. Não da religião, que fique claro. Tampouco do gênero gospel. Como emocionam os corais paroquianos! Sou capaz de chorar todas as vezes em que as freiras cantam em 'Mudança de Hábito'. E quantos artistas tiveram sua obra tocada pela religião de forma sincera, sem catequização radical? George Harrison, Elvis Presley, Roberto Carlos... Assim, sim! Sem algemas, sem contrato assinado com o Senhor. Há de se debochar, sim, de quem faz caixa com a fé. Caixa pesada.

Pensai-vos nos desvirginados, pensai-vos nos expulsos do paraíso, pensai-vos no Dicró, plantado sob o sol da Carioca, a vender seu disco por preço verdadeiramente cristão.

E pensai-vos, oh céus, que a música é livre. E a religião também.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A arte do jabá - Curiosidades sobre 'Uma Escola Atrapalhada'

 uma escola marketada (imagem: reprodução do álbum original)


A democracia abraçava os brasileiros no ano de 1989. Encerrada a ditadura, a eleição para presidente no Brasil consolidava-se novamente. Na sociedade da época, uma juventude cheia de gritos entalados, sedenta por liberdade. Neste mesmo ano, Renato Aragão, Dedé, Mussum e Zacaria comemoravam mais um sucesso de bilheteria: 'Os Trapalhões na Terra dos Monstros' trouxe mais de 3 milhões de espectadores aos cinemas brasileiros. Didi preparava sua próxima tacada, embora os tempos já não fossem os mesmos.

Insatisfeitos com a gerência de seus direitos, Zacaria, Dedé e Mussum já haviam criado a ZDM (antiga Demuza) para co-produzir os filmes ao lado da Renato Aragão Produções Artísticas. Curiosamente, a logomarca da ZDM reproduzia três pessoas em cima de cada letra, com cada cabeça trajando um colar elizabetano (espécie de cone para uso veterinário que limita o campo de atuação dos olhos, boca e ouvido). Embora continuasse lucrativo, o quarteto já não estava em sintonia amistosa.

 logo sugestiva da ZDM
Mas o filme que estava por vir, de forma no mínimo estranha, selou em tom profético o fim dos Trapalhões. A estranheza começa de cara. De 1990, 'Uma Escola Atrapalhada' era o primeiro fime dos quatro sem a palavra 'Trapalhões' no título. Dedé, Mussum e Zacaria tiveram papéis secundários em um roteiro onde Renato Aragão soube encaixar enbaçadamente sua própria biografia. Didi é o zelador da escola. Passa o início do filme sem dar as caras. Chega numa rede, na mala de um ônibus, e enfrenta percalços pelas ruas até chegar no trabalho. Uma clara alusão ao passado de Renato, cearense que foi ganhar a vida na cidade grande. No meio da trama, em um de seus diálogos de maior importância, revela o sonho de ser ator de cinema. Passa mais um tempo sumido no filme até o desfecho.

Um dos professores da escola é interpretado por Augusto Liberato. E isso é fundamental para entender a escolha dos atores (!) protagonistas. Lançado no 'Viva a Noite', extinto programa musical que dominou sábados do SBT por anos, o grupo Dominó participara de outros filmes dos Trapalhões, inclusive dos dois últimos, junto com Angélica. Mas, com a saída de Nill, o Dominó dava sinais de desgaste. Para a felicidade teen da nação, a Promoart, produtora que havia criado o Dominó, já tinha outro enlatado no cartucho: o Polegar. Ao invés de coreografias estilizadas, os meninos do Polegar se apresentariam com instrumentos em punho. Gugu, que curiosamente encarnava um professor de música, era apresentador do 'Viva a Noite' e dono da Promoart. 

Angélica já era um fenômeno pré-adolescente estabelecido quando o filme foi concebido. Pouco antes de 'Uma Escola Atrapalhada', a loira havia gravado pela antiga CBS o álbum 'Angélica', o segundo de sua carreira. O single 'Angelical Touch' era o grande filão do trabalho. Não só por isso a canção ganhou clipe inserido durante o filme. 'Angelical Touch' era, na verdade, um jingle maquiado para impulsionar as vendas da linha de cosméticos que Angélica lançaria pela Boticário. A linha, homônima à música, era segmentada para meninas de 10 a 15 anos e incluia perfume, shampoo e brilho labial. A letra da canção avisava:

'Se alguem entrar na onda do meu papo
Se quiser sentir num beijo o meu perfume
Até príncipe encantado vira sapo
E você vai se morder todo de ciúmes'

O disco de Angélica vendeu mais de um milhão de cópias (platina pela ABPD). Sobre o marketing disfarçado, o renomado jornalista cultural Aramis Millarch escreveu no tablóide Estado do Paraná, no dia 16 de março de 1990:

'O projeto Angélica Touch ultrapassou a investimentos de um milhão de dólares e o contrato de exclusividade com a atriz-cantora foi feito com base numa participação em royalties, o que deverá ampliar consideravelmente sua já gordíssima conta bancária (...) Trabalhando com o produtor Mazzola, num repertório feito especialmente para o público adolescente, não houve dificuldade de ajustar uma canção para que a ninfeta criasse em seu disco um jingle disfarçado'.

Outro que ganhou clipe no filme foi Supla. Punk rocker de berço esplêndido, Supla já tinha um álbum gravado no currículo e preparava o segundo, sob a produção de João Barone e participação de Roger Moreira. Se hoje é piada para muitos, Supla já foi aposta. Apostaram também no então dublador de Charlie Brown no Brasil, um jovem ator de fala calma. Era a estreia de Selton Mello no cinema brazuca.

Pela primeira vez em um filme dos Trapalhões a história não girava em torno dos próprios. Para que isso se sustentasse, combinaram artistas de pontencial musical com um enredo misterioso. Logo na primeira cena, o temido inspetor Anselmo repreende de maneira insana um aluno que se distrai durante a execução do hino nacional. Enquanto raspa a cabeça do rapaz, Anselmo dispara com olhar raivoso: 'isso é por desrespeito à bandeira!'. Impossível não associar a cena a uma tortura dos tempos de ditadura. O inspetor, de uniforme que mais se parece com uma farda militar, ronda o colégio de chicote na mão e inibe as algazarras e festividades promovidas pelo alunos. Ao se revelar o grande vilão da trama, tira do bolso sua Luger P08, famosa pistola usada pelos nazistas.

Meio do filme, um telefonema denuncia a existência de uma bomba dentro do colégio. Brecha para rápida aparição de Dedé e Zacaria, os Caça-Bombas. Obviamente atrapalhados, os dois não acham a bomba mas prendem dois suspeitos: o negro (Mussum, um vidente vendedor de cachorro quente) e o nordestino (Didi, o zelador). Saem os quatro Trapalhões, juntos pela última vez, na kombi dos Caça-Bombas, que inexplicavelmente explode com a tal bomba que deveria estar na escola. Diante dos destroços, chamuscado pelo fogo, Zacaria reclama da peruca queimada. Mussum dispara: 'se eu não sou vidente eu desencarnavis!' E eis que Didi, olhando para os três, solta a frase mais curiosa e estranha de todo o filme: 'tá vendo no que dá, entrar no filme dos outros?'. Foi o último filme de Zacaria, que viria a falecer depois das filmagens. No clímax, o zelador Didi some da escola e reaparece finalmente com seu sonho realizado: vira ator de cinema.  

homenagem prestada antes do filme
Os polegares encerram o longa apresentando 'Sou como Sou', em tom altamente festivo, libertário, comemorando a derrocada do inspetor Anselmo.

Com fotografia de Walter Carvalho e direção de Antônio Rangel, 'Uma Escola Atrapalhada' levou mais de 2.500.000 espectadores ao cinemas. Execrado pela crítica da época, é o 59º longa-metragem mais assistido da filmografia brasileira, na frente de 'Tropa de Elite 1' e de 'Meu nome não é Johnny'. Foi um dos últimos filmes feitos com a mão da Embrafilme, falecida estatal criada em 1969 que fomentava a produção e distribuição cinematográfica brasileira. A Embrafilme foi extinta naquele mesmo ano de 1990, pelo Programa Nacional de Desestatização (PND), criado no governo Fernando Collor de Mello.

Collor foi o primeiro presidente da república a sofrer um impeachmeant. A democracia brasileira persiste. Angélica e o grupo Polegar desistiram da carreira musical. 



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Para fazer o download da trilha sonora completa do filme, clique AQUI.

domingo, 10 de julho de 2011

Disco de platina para o bonitinho surdo e mudo

sem voz e sem mão, o som vem do lugar errado (foto: clorofot.com / designer - bob turek)


'O ouvido escuta, o olho vê e a boca come', disse-me o observador. 'Desconfie do artista que se diz músico ao mesmo tempo em que se preocupa com o que veste', disse-me outro. Quando o ouvido escuta, fecham-se os olhos e o produto música é consumido com sobriedade. Com um quê pretensioso, os olhos se abrem a fim de julgar e é aí que o circo ganha vez. Se há mão pesada no instrumento, o visual é dispensável e o som é canalizado ao que realmente interessa: o ouvido.

Ney Matogrosso certamente será lembrado como um grande cantor, mas é inegável que seu desempenho enquanto bailarino somado a sua sensibilidade figurinista tenha contribuído para garantir-lhe cadeira entre os imortais. Precursores de uma nova visão cenográfica e performática, os tropicalistas equilibraram os sentidos e souberam casar o som com a imagem. O exemplo de sucesso mais claro chama-se Michael Jackson. Mas o Ney é o Ney, o topicalismo é o tropicalismo e o Michael é um milagre transcendental.

Sucede que uma penca de artistas contemporâneos insistem em preencher lacunas sonoras com um visual requintado. Fantasiam-se como se vivessem em comerciais de margarina, dormem de topete armado e tremem na frente das câmeras por qualquer embaçado no caro óculos escuro que provoca a noite ofendida. Quando mão ou voz não pesam, viram manequins de ipod engolido.

Pera lá, não adianta ghandiar de chinelas por aí como um trovador desprendido da aparência, clamando como um profeta que quem vê cara não escuta canção. No BBB fonográfico, onde câmeras cercam quem vende áudio, a preocupação com a casca se faz necessária. Malandra é a cigarra, consciente de que casca se troca.

Quando a armadura luta mais que o soldado, algo está errado. Há casos - e não são poucos - de músicos que nos chamam mais atenção pelo vestido do que pelo tocado/cantado/composto. A camisa transada maqueia o barulho vomitado.

'Maquiagem desrespeita rugas', disse-me a romântica dermatologista. O carnaval é o carnaval. E o vômito é o vômito: enjoa quem vê, mas não atinge quem escuta.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O pingo no & do sertanejo universitário

pra lembrar da Rosinha


'Um é pouco, dois é bom, três é demais', se orgulham as duplas sertanejas. Mas a moda de viola passou. A velha canção caipira não brada mais os ribeirões, tampouco os pássaros da campina enluarada. A sonoridade da sanfona ganhou ares modernos e o chapéu de caubói agora disputa espaço com gargantilhas estilizadas. A camisa continua xadrez, embora mais apertada. Eis o sertanejo universitário.

Se gosto é gosto, o que será o bom gosto? Amado por uns e odiado por outros, o velho sertanejo ganhou a vertente 'universitária' para dialogar com um determinado público. Sem pretensões de consagração na literatura brasileira, o papo dos caras é reto. Retíssimo, aliás. O sertanejo universitário não pede licença poética, pede licença da poesia. A falta de subjetividade é proposital e suficiente. Esse folk brazuca só quer saber do que pode dar certo, não tem tempo a perder.

Aos universitários o que é dos universitários. E o que diz respeito aos citados? Por natureza, a faixa etária dos ouvintes quer mesmo é trilha sonora para suas aventuras românticas, suas descobertas amorosas, investidas sexuais, tendendo sempre ao descompromisso. Com o rock nacional enfraquecido, o sertanejo tiozão teve de se reiventar para atender a meninada. Errado? Jamais. Coisa de demanda, uma hora o mercado supre.

Sutileza não é a proposta. O sertanejo universitário se coroa com a objetividade. Sem radicalizar, como o funk carioca, suas letras vão direto ao ponto e fixam a identificação entre o produto e o consumidor. E sem identificação não há venda. Além das letras, a melodia também é objetiva, o que torna a dupla Victor & Léo, por exemplo, grande campeã de pesquisa em sites de cifras para aspirantes a violeiros. Música fácil de se tocar é disseminada com igual facilidade.

Há, no entanto, um porém. A objetividade carimba na canção o prazo de validade. Ê, ma peraê, ouvi forró tocando e muita gente aê... Não, não é pecado você falar de amor. Mas hoje em dia já não vejo tanta gente aê...

O problema surge quando o casamento entre música e poesia é rompido, vira entretenimento barato, reclamam os infiéis. E universitário por acaso pensa em casamento? Ponto para vocês, gravadoras.

domingo, 12 de dezembro de 2010

O que é que o baiano tem?


João Gilberto se conhece muito bem

Conta Moraes Moreira que os Novos Baianos mudaram consideravelmente sua musicalidade após um encontro com João Gilberto. Antes do particular com aquele que para eles era o mestre, a guitarra roncava mais pesada e rock era a definição mais fiel do que se ouvia daquela dúzia de bichos grilos. Pois bem. Quando pedida opinião sobre o som dos jovens conterrâneos, João respondeu com o jeito manso costumeiro: 'É, bacana. Mas eu acho que vocês precisam se conhecer melhor.' Choque, banho de água fria, virada de página. As palavras do guru resultaram em 'Acabou Chorare' (1972), mítico album da trupe, considerado um dos discos mais influentes da história da música brasileira. Para a revista Rolling Stone, o melhor disco canarinho de todos os tempos. O primeiro verso da primeira faixa da obra - 'Brasil Pandeiro', de Assis Valente - honra o tupiniquinismo: 'chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor...'

A hora havia chegado fazia tempo. Nelson Motta registrou em seu livro 'Noites Tropicais' que Caetano, ainda no início da Tropicália, se perguntava cheio de medo: 'O que João Gilberto estará achando disso tudo?', de toda aquela fantasia, rebolados e guitarras elétricas. Mais tarde, Caetano criou coragem e perguntou a João, que retrucou sereno: 'Que nada! Acho isso que vocês fazem maravilhoso, acho linda essa animação, todo esse rebolado, esses movimentos, essa alegria. Eu gosto disso, só que eu tenho tudo isso aqui...' disse, apontando para a garganta.

Os desavisados podem lhe atribuir prepotência mas, de fato, foi com gogó e um violão que João Gilberto chegou onde chegou. Os que carecem de altos decibéis podem lhe atribuir chatice, mas a sonoridade intimista de João pôs tapete vermelho para o Brasil nas mais badaladas casas de show do mundo e estacionou ao lado de Sinatra e outras lendas da world music. Afinal, o que é que o baiano tem? Não sei. Mas sua música tem o quesito básico do sucesso sincero: a simplicidade.

João Gilberto Prado Pereira de Oliveira é de Juazeiro, Bahia, Brasil.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

A finada malandragem do politicamente incorreto

Bezerra da Silva no álbum 'Eu Não Sou Santo', de 1990: um malandro porta-voz

Malandragem, dá um tempo do gangsta rap norte americano e conheça Bezerra da Silva. Muito antes de 50 Cent e aquela gurizada estourarem seus champagnes, aquele pernambucano cria de favela carioca já desmitificava o narcotráfico, com a classe de um bom malandro.

O Sambandido de Bezerra da Siva, rico musicalmente, precedeu a pobreza dos proibidões de facções criminosas que se instalou no Rio de Janeiro. A poesia de Bezerra abordava o encarceramento com muita liberdade, deixando de lado a máscara do politicamente correto. Em 'Produto Importado', por exemplo, Bezerra explanou com metáforas elegantes um sistema que até hoje dá muita dor de cabeça em nosso país.

Toda hora eu vendo
Essa mercadoria não é de encalhar
É produto estrangeiro

Que vem importado lá de Bogotá


Se está duro não chega perto

Porque fiado eu não posso vender

Coisa fina, custa caro

E dá muito trabalho pra gente trazer

Tem que vir de navio ou então de avião

Pra poder chegar aqui

E se você não tiver com grana

Também não tem chance para possuir


Em produtos importados

Não pode haver bagatela

Eu vendo para a elite

Classe média alta e baixa e também pra favela

Muita gente ai não gosta

Mas eu vou fazer o que

Quando eu não tenho a massa reclama

Por isso eu não posso parar de vender


Culpado ou não, o sambista observou com autoridade. Durante anos mendigou em Copacabana, até se firmar no meio musical e colocar seu Partido Alto nas rádios cariocas. Com Moreira e Dicró, Bezerra salvou Gabriel Pensador de uma enrascada na festa da MPB, mas também se meteu em algumas até cair nas graças do high society. Na ótica de uma lei paralela, o poeta analisa a sobrevivência na favela em 'O Malandro Era Forte', de 1985.


E o cara babava
Igual a cachorro danado
Foi logo metendo a mão na turbina
E o povo gritando:

Esse já é finado!
A propria lei é quem diz
Que a defesa é um direito sagrado

Ai eu meti a mão no meu ferro

Saí dando pipoco e derrubei o malvado


Se hoje estampa o braço de Marcelo D2, em 1990 Bezerra causava polêmica ao estampar o disco 'Eu Não Sou Santo' (foto). Pregado na cruz, como um redentor, o artista empunhava dois revólveres, com a favela em pano de fundo. Seu último trabalho seria um CD de canções evangélicas, mas não deu tempo de concluir. Morreu em 2005, no dia 17 de janeiro (171), por falência múltipla dos órgãos derivada de complições pulmonares. Antes de padecer, afirmava aos mais próximos que não queria ser enterrado em final de semana ou feriado, para não atrapalhar a praia dos amigos. Tem coisa mais carioca, morrer numa segunda-feira? Pedido atendido, salve Bezerra da Silva!

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Tipo exportação

No Castelo das Pedras a cerveja é um real


Um mar de latinhas amassadas no chão é passarela para um desfile de roupas falsificadas. Muita, muita gente. Erupções de faíscas, bundas faraônicas, chamativos cordões dourados e bonés, muitos bonés. O palco dispensa instrumentistas e bons intérpretes: a música é digital, o que no caso dá muito certo.

No Castelo das Pedras a cerveja custa um real. Em cima, uma segregação natural. Mocinhos e patricinhas da mais alta estirpe adquirem um camarote por preço irrisório e assistem do alto a grande massa do grande baile. No coração da zona oeste do Rio de Janeiro o funk se perpetua.

O batidão é genuinamente carioca, filho da Guanabara, e não vai morrer tão cedo ainda que muitos assim desejem. Este ritmo fabricado aqui pode até ser condenável esteticamente, mas pelo menos é um movimento assumido e honesto, fruto da nossa terra.

Não é o funk que joga contra a língua portuguesa. É o português que joga contra o funk. Muitos dos que condenam o pancadão rebolam suas bundinhas em caras boates ao som de hip hop norte americano de conteúdo tão safado e pobre quanto, ou muitas vezes mais. A diferença é que os negões de lá cantam em inglês. Os negões de lá são os de lá. É o complexo de colonizado que age sobre as magras cinturas da zona sul as fazendo rebolar.

Jorge Mautner falou uma vez sobre um embaixador brasileiro que levou cachaça para um importante governante alemão que queria conhecer uma bebida brasileira. Após a prova, quando o alemão perguntou 'quem bebe isto em seu país?', o embaixador, envergonhado, respondeu que eram os escravos. Ouviu então a seguinte contra-resposta: 'Ora, mas se os escravos bebem isso, imagine o que bebem os nobres...'

Gosto é gosto e ninguém é obrigado a gostar de funk, o debate não é esse. O que intriga é a mania de importação que o brasileiro tem. No Castelo das Pedras, poquíssimas músicas estrangeiras são executadas, quase nenhuma. Falta na patriçada, no high society, o que a galera do funk tem de sobra: confiança no que se tem.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

'Raconte Moi' - a Paris gilbertiana de Stacey Kent

Influências brazucas em francês aveludado no 11º álbum de Stacey Kent


Ela é americana, parece uma bonequinha francesa, mas é apaixonada pelo Brasil. Prova disso é seu último disco, 'Raconte Moi', lançado no início deste ano pela EMI. Foi também no início do ano que Stacey Kent declarou seu amor ao nosso país, em entrevista ao jornal O Globo.

- A cultura e o povo brasileiros me encantam. João Gilberto é meu herói, meu Deus, minha maior referência na música, e também adoro Caetano, Marisa Monte, Maria Rita, Cartola - disse a moça, de voz aveludadíssima.

Boneca bem instruída. 'Águas de Março', do mestre Jobim, abre o 11º disco da cantora que goza de treze anos de carreira. Virou 'Le Eaux de Mars', pela tradução em francês de Georges Moustaki. Aliás, o disco inteiro é cantado em francês e conta com o preciso sax de Jim Tomlisom, marido de Stacey e produtor de 'Raconte Moi'. Acompanhado de uma afinada galera, Tomlisom também está presente nas outras faixas deste precioso trabalho. Para os amantes da boa música brasileira, Stacey não decepciona: a levada bossanovista marca algumas canções do CD (como 'Jardin d'hiver' e 'L'Étang'). Em outras, chovem influências brazucas, mas também há releituras de clássicos franceses.

A grande supresa é 'La Venus de Mélo', um dos carros chefes do álbum. A música pode ser encontrada facilmente no YouTube, em execução original do disco. A perfeita sintonia entre a interpretação vocal de Stacey e sua banda garante não somente a pontualidade da canção, mas também prova originalidade, fruto do bom gosto da falsa franco-brasileira. O acerto é grande. 'La Venus de Mélo' é obra do trio de compositores franceses Bernie Beaupère / Emilie Satt / Jean-Karl Lucas, que também assinam a faixa homônima ao disco.

Além da música, a literatura brasileira é outra paixão de Stacey Kent. Entre seus autores preferidos estão Machado de Assis e Clarice Lispector. O mergulho em nossa literatura também tem um quê de propósito, já que a talentosa intérprete tem como ambição dominar a língua portuguesa.

- Fiz um curso de verão de português em Vermont (estado ao norte de Nova York). Foram sete semanas nas quais prometi falar apenas em português. No próximo verão, farei outra imersão, mais sete semanas apenas falando o idioma de vocês. Tenho um professor de português, Antônio Ladeira, que é um grande poeta, e também estamos compondo juntos: Ladeira, meu marido, Tomlinsom, e eu - contou.

E a vontade de falar português está relacionada diretamente à vontade de cantar em português.

- Não quero cantar numa língua sem compreender a poesia, que tem um sentido, não é apenas a fonética - explicou Stacey, ainda em entrevisa ao O Globo.

Stacey Kent é a prova de que tem muito gringo mais brasileiro do que muito brasileiro. 'Raconte Moi' é uma lição e vale a pena.

sábado, 21 de agosto de 2010

Rock in Rio: um bom filho à casa torna

Estreia do Rock in Rio - 1985: mais de 1 milhão e trezentas mil pessoas


Bateram o martelo e o Rock in Rio está de volta. Reuniu 250 mil madrileños em sua última versão, na capital espanhola, e agora retorna à cidade que lhe batizou em busca do receptivo público carioca. Receptivo e presente: na última vez que o rock foi in Rio, o festival contou com quase um milhão e trezentas mil pessoas, que deliraram ao som de um cardápio váriado de artistas nacionais e internacionais. Aliás, em nove edições de vida, foi no Brasil que o festival idealizado pelo publicitário Roberto Medina teve disparado seus melhores indíces de público. Em 85 e 91, anos de estreia do evento, o público ultrapassou a casa dos dois milhões. Medina sabe, o carioca é bom consumidor.

Se para o resto não se pode dizer o mesmo, quando o assunto é música o Rio de Janeiro está em alta. Não pelos talentos que a cidade fabrica (sempre fabricou, não é novidade para ninguém), mas pelos eventos musicais que têm ancorado aqui. Em agosto, os sertanejos entrelaçados à força em nossos ouvidos foram dissolvidos pelo Bourbon Street Fest. A entrada franca e o repentino frio foram receita perfeita para atrair o público carioca a um palco simpático, encrostado no Parque Garota de Ipanema, beirada do Arpoador. Feras de New Orleans, cidade norte-americana berço do jazz, se apresentaram de forma enérgica e respeitosa, como manda o procedimento num Rio que musicalmente não deve nada a ninguém.

O destaque no primeiro dia do BSF foi um jovem e talentoso negão que, acompanhado de uma afiada banda a qual liderava, não decepcionou revezando trompete e microfone na mão. Shamarr Allen & The Underdawgs fizeram a galera vibrar em releituras de clássicos jazzísticos e levadas empolgantes que iam do hip-hop ao rock, passeando por influências latinas. Quem também amaciou nosso ego foi o veterano mas não menos enérgico Gary Brown: presenteou os presentes com 'Palco', do Gil, reformulada em um jazz funkeado que arrancou aplausos dos mais discretos.

Enquanto isso, na vizinhança... Chamam de Woodstock Brasileiro, mas a pacata cidade de Itu (SP) receberá mesmo o SWU, em outubro. O 'Starts With You' levanta a bandeira da sustentabilidade, sustentando grande organização. Bandas de peso como Rage Against The Machine, Incubus e Dave Matthews Band já confirmaram. Outra boa surpresa é a volta do Sublime. De molho desde 96, quando o vocalista Bradley Nowell morreu de overdose, a banda californiana voltou no ano passado com Rome Ramirez nos vocais e é presença certa no segundo dia do eco-festival paulista. No segundo dia também tem Joss Stone, jovem inglesa talentosíssima de repertório pop soul. A decepção fica por conta da música brasileira, muito mal representada por um Mutantes desfalcado, pela circense Teatro Mágico e pela dupla Capital / Jota Quest. Los Hermanos salvou.

Medina não lê este blog, certamente. Quem lê? Mas fica a a dica, doutor, para esse próximo Rock in Rio. Valorize a música brasileira. Você é bom nisso, assim o fez em 85, 91 e em 2001 (quando poderia ter feito mais). Vê lá, basta um Luan Santana para sujar a imagem desse festival de tanto prestígio.


E você, quem quer ver no Rock in Rio 2011?

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

MTV Brasil - Produzindo música perecível

Procura-se, urgente, pela cidadã(ão) que pode salvar o Restart!



Criada no início da década passada, a MTV Brasil foi a segunda filha da MTV norte americana. A primeira representante da emissora, fora dos Estados Unidos, foi a MTV Europe. Em outubro de 1990 nascia o primeiro canal de TV segmentado no Brasil, fruto de uma parceria entre o Grupo Abril e a Viacom (detentora da MTV Networks). De acordo com a mãe americana, a MTV canarinha buscaria público jovem, com programação pautada basicamente em música.

Hoje, ainda de olhos no alvo teen, a MTV Brasil se tornou uma poderosa fábrica de artistas-produtos, através de uma veiculação maciça de bandas as quais o canal julga conveniente divulgar. Com esse empurrãozinho, aberrações se tornam fenômenos de um dia para o outro.

Bastante atrasado, foi na Rolling Stone de junho que li pela primeira vez sobre a banda Restart. Se meu primeiro contato com a meninada tivesse sido pelo ouvido e não por uma inocente leitura, com certeza não teria cometido a heresia de jogar o nome deles no Google. Pela inflamada crônica de Miguel Sokol abordando uma 'juventude colorida', recorri à internet para conhecer um termo até então inédito para mim: o Happy Rock. Lembrei de calças amarelas entre outras Fiukagens e antes de clicar em 'pesquisar' já me senti um desperdiçador do meu tempo.

Sobre a Restart, tirem depois suas próprias conclusões. Melodias, letras, conteúdo, proposta... Mas voltemos a MTV Brasil. A edição 2010 do VMB, espécie de festival criado pela emissora, traz nesta versão 16 categorias, onde diversos músicos serão premiados. A premiação é decidida pelo juri popular e por um juri especializado. Restart é concorrente em cinco categorias, entre elas a de Artista do Ano.

Pera lá? Só eu que tô pasmo? Restart, artista do ano? Onde? No Brasil ou em Júpiter? Sou um mínimo interessado em música e durante a metade do ano de 2010 nunca tinha ouvido falar nesses moleques. Como disse, posso não ter captado, posso ter me atrasado, afinal não leio Capricho e a programação da MTV tem me irritado. Mas quando penso em 'Banda Restart - Artista do Ano da Música Brasileira', imagino Tom, Noel, Cartola, Zé Keti, Gonzaguinha, Elis, Cássia, Renato Russo, Cazuza e outros mil se revirando em suas covas. Além da dita bandinha, NX Zero, Fresno, Sandy e Mallu Magalhães também brigam pelo prêmio. Tá certo que o alvo é teen, MTV, mas vocês só podem estar de brincadeira...

Com um figurino enjoado e exagerado, onde a cabeleira é milimetricamente bagunçada, os carinhas de bebê da Restart fazem mesmice, herdando a cópia da cópia da cópia. Musicalmente, não propoem nada novo. Apenas cospem todos os enlatados dos USA que absorveram de nove às seis nos seus 14 anos de vida. Didáticas como um Telecurso 2000, suas letras seguem o Manual Prático para Aspirantes a Emo-Rock-Teen-Star no Brasil - Volume 1, com uma pobreza repetitiva que até ofende.

Aclamada entre a molecada, 'Levo Comigo', da tal Restart, concorre na categoria Hit do Ano. Não vou perguntar se isso é aqui ou em Júpiter de novo, mas transcrevo a seguir alguns versos da mesmíssima poesia:


E eu quis escrever uma canção
Que pudesse te fazer sentir
Pra mostrar que o meu coração
Ele só bate por ti.

Como uma bela melodia pra dizer
O que eu não consigo explicar
Como uma bela melodia pra você ver
Tudo o que eu queria te falar.

E dizer que é você
Que pode me mudar
Que pode me salvar


Ok, você quem, Restart? Quem, pelo amor da nossa rica música brasileira, quem pode te mudar? Quem pode te salvar? Procura-se!